sábado, 6 de março de 2010

LECTIO DIVINA - Lendo para transformação

Uma das grandes preocupações que envolvem a experiência espiritual hoje é o analfabetismo bíblico cada vez mais crescente nas novas gerações de cristãos. O desinteresse pela Bíblia é alarmante. Vivemos hoje aquilo que o profeta Jeremias profetizou dizendo: "Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas" (Jr 2.13). A espiritualidade moderna é nutrida por fontes cujas águas não são perenes. Daí a inquietação, o frenesi, a busca louca e insana por experiências que nunca satisfazem a alma. Precisamos voltar ao manancial perene de águas que satisfazem a sede do coração, uma fonte que jorra para sempre e nos liberta das cisternas rotas que secam e não satisfazem. Gostaria de propor um velho caminho para a leitura bíblica chamado "Lectio Divina", ou Leitura Devocional.

Leitura Devocional é uma forma disciplinada de devoção e não mais um método de estudo bíblico. Não me refiro aqui à leitura indutiva que fazemos quando procuramos investigar o texto bíblico, ou àquela onde buscamos respostas mais imediatas para os conflitos diários, nem mesmo à leitura de onde saem os sermões e estudos bíblicos. Pelo contrário, a Leitura Devocional nunca deve ser usada para algum propósito utilitário ou pragmático. É feita pura e simplesmente para conhecer a Deus, colocar-se diante da sua Palavra e ouvi-lo. Esta atitude de silêncio, reverência, meditação e contemplação define a postura de quem deseja aproximar-se da Palavra de Deus. O exemplo bíblico desta postura encontramos em Maria, irmã de Marta, que "quedava-se assentada aos pés do Senhor a ouvir-lhe os ensinamentos" (Lc 10.39), "enquanto sua irmã agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos serviços" (Lc 10.40). Há na Bíblia muitos outros exemplos de devoção, de pessoas que simplesmente se punham diante do Senhor, sem esboçar uma única palavra, sem apresentar um único pedido, apenas ouvindo, meditando e contemplando.

O Rev. Eugene Peterson chama essa leitura de "exegese contemplativa". Para ele, trata-se de uma leitura bíblica usada pela igreja em toda a sua história. A exegese contemplativa não diminui o lugar da exegese técnica e teológica; no entanto, nenhuma técnica produz alimento ou cura, assim como nenhuma informação produz conhecimento. Segundo ele, existe algo vivo em um livro, algo mais do que palavras ordenadas: existe uma alma. A redescoberta da exegese contemplativa começa com a percepção de que toda palavra é basicamente e originalmente um fenômeno sonoro e não impresso. Palavras são faladas antes de serem escritas, são ouvidas antes de serem lidas. As palavras de Jesus que ficaram e que são necessárias para nossa salvação são aquelas que foram ouvidas, saboreadas, digeridas, repetidas e pregadas, num processo dinâmico envolvendo a comunidade dos crentes. "Lectio Divina" é uma leitura para transformação.


São quatro os estágios por que passamos ao nos dedicarmos à Leitura Devocional: leitura, meditação, oração e contemplação. Cada um nos conduz inevitavelmente ao outro. A leitura, quando feita repetidamente e com reverência, conduz à reflexão, que muitas vezes vem acompanhada de uma visualização da cena bíblica. Por exemplo, podemos tomar o conhecido Salmo 23 e deixar que por algum momento nossa mente crie uma imagem do pasto verdejante e tranquilo para onde o pastor leva suas ovelhas. Esta atitude de permitir que o texto nos conduza imaginativamente é o que os antigos chamavam de meditação. Se nos encontramos tensos, apressados, buscando alguma resposta urgente; se a Leitura Devocional é algo que precisa ser feito como mais um item em nossa apertada agenda diária, perdemos o significado da devoção que nos leva à meditação. Quando Maria, mãe de Jesus, ouviu as palavras dos pastores sobre o que viram e ouviram acerca do Messias, diz o texto que ela "guardava todas estas palavras, meditando-as no coração" (Lc 2.19). Penso que Maria ficou ali, quieta, em silêncio, procurando discernir e imaginar os caminhos do seu filho e a profundidade dos mistérios divinos.

A meditação no Salmo 23 (ou qualquer outro texto) produzirá um desejo de falar com o Pastor, de falar com Deus. Nosso coração e mente se moverão em direção ao Senhor que é o Bom Pastor, e este movimento do coração em direção a Deus é o começo da oração. Contemplação é o ponto alto da experiência de oração, é a profunda comunhão com Deus que nos envolve completamente e transforma nossa vida.

Para começar, separe trinta minutos cada dia. Encontre um lugar calmo e recolha-se para a leitura. Deixe de lado sua percepção crítica, acadêmica, analítica e coloque-se numa atitude de expectativa. Esta é uma postura que, normalmente, as pessoas- pragmáticas chamariam de "perda de tempo", porque não traz consigo nenhuma proposta objetiva. A Leitura Devocional é uma forma de absoluta submissão, de deixar acontecer. Deus nos conduzirá e definirá sua própria agenda. Nunca saberemos ao certo aonde a prática da leitura nos conduzirá. De certa forma, nós entregamos toda a necessidade de controle sobre o texto, e permitimos que Deus nos conduza livremente para o encontro com ele.

Todo relacionamento pessoal requer tempo, esforço e atenção. A prática diária da Leitura Devocional estabelece um padrão que se transforma na base para um relacionamento sério e profundo com Deus. Talvez por exigir tempo e uma abordagem não direcionada, objetiva, com resultados concretos, a Leitura Devocional não tem grande aceitação no mundo moderno, caracterizado pela sua praticidade, racionalidade, superficialidade, impessoalidade e urgência.

A Leitura Devocional pode também ser praticada publicamente. Na verdade, as pessoas aprendem melhor quando podem ver do que quando apenas ouvem ou lêem. O grupo pode ser o da Escola Dominical, ou um grupo familiar, ou mesmo o culto público numa igreja não muito grande. Convide as pessoas a fecharem os olhos e por alguns instantes, silenciosamente, invocarem a presença e auxílio do Espírito Santo. É necessário, porém, que antes mesmo da invocação da presença do Espírito Santo elas invoquem a sua própria presença. É muito comum chegarmos aos nossos encontros e reuniões com nosso espírito ainda muito agitado, inquieto e distante. Após um breve momento de silêncio e quietude, alguém começa a ler e repetir o texto bíblico calma e pausadamente, num tom sereno e tranquilo, dando sempre uma pausa entre uma sentença e outra levando o grupo a meditar e orar. Um texto que tenho usado com grande frequência é aquele do cego Bartimeu que ouve a pergunta surpreendente de Jesus: "Que queres que eu te faça?” (Lc 18.35-43). Normalmente, o grupo termina com uma oração respondendo pessoalmente a esta pergunta de Jesus.

É importante lembrar que, tanto na prática pessoal como no grupo, cada pessoa deve penetrar na narração como se fosse um personagem daquele relato. No caso do cego Bartimeu, como se fosse o próprio cego ou um dos discípulos de Jesus, ou mesmo um transeunte qualquer. É um exercício espiritual que requer um pouco mais de imaginação. Por isso, devemos deixar de lado nosso academicismo racional para uma abordagem mais afetiva e pessoal.

A prática desse exercício espiritual trará também grande influência nas nossas relações interpessoais, pois nos ajudará a ouvir melhor os outros, deixando que eles mesmos se revelem a nós e evitando a precipitação dos nossos juízos preconceituosos.

Ler a Bíblia não é sempre a mesma coisa que ouvir a Deus. Uma coisa nem sempre implica na outra. Ouvir a Deus exige uma postura, uma atitude diante de sua Palavra. A Leitura Devocional é uma forma de nos colocarmos diante de Deus e sua Palavra como quem de fato deseja ouvir, meditar, orar e contemplar. É dessa postura que nasce, não apenas o prazer pela Palavra de Deus, mas também a experiência transformadora do poder da graça divina.

Fonte: Janelas para a vida. Ricardo Barbosa - Encontro Publicações


Que Papai abençoe a todos
Missionário Adilson

2 comentários:

Juliano disse...

mas bah! tiraram uma foto do gustavo lendo a bíblia quando criança! haha

Lissa disse...

Muito boa a postagem! Esclarecedora ;)